terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Grande Descoberta



O quadro era um tanto quanto incomodo. Uma sala quase vazia e cheirando a mofo. Ela estava sentada na poltrona próxima a janela e a luz da lua agravava ainda mais a sua palidez. Estava tão quieta que parecia não ter notado minha presença. Nem mesmo o gato que estava deitado em seu colo, se mexerá quando eu cheguei à porta. Pensei em sair dali antes de ser notado pelos dois, mas...

__ Por que sair se sua curiosidade implora para que fique?

A voz dela tinha um arrastar que causava arrepios. Eu vacilei, mas entrei lentamente. Ela continuava a olhar pela janela de sua poltrona. Tinha as pernas cobertas por uma manta e a mão fazia movimentos pelo dorso do gato como se aquilo fosse completamente involuntário a vontade dela. O bicho me encarou pela primeira vez. Seus olhos faiscavam em um tom de amarelo que inexplicavelmente me dava à sensação de que filmavam a alma. 

__ Boa noite!
__ Deve ser boa, não é?

Eu fiquei parado sem jeito e sem coragem de continuar a me aproximar. O gato ainda me observava e ela ainda não me olhara nos olhos. A situação era incomoda e eu me arrependia em silêncio de ter me aproximado daquela casa.

__ Não se sinta assim. Puxe aquele banco e sente-se. – enquanto eu me encaminhava para o banco, ela completou. – A curiosidade cobra um preço alto aos seus adeptos. O pior é que sempre pagamos. Todos nós! Até mesmo eles.

Olhei ao redor da sala a procura das outras pessoas. Não vi ninguém. Só móveis pesados e aparentemente mal cuidados dividiam a sala conosco. Notei que alguns estavam cobertos como que esperando mudança ou um fim qualquer. Finalmente sentei-me nem tão perto da mulher, mas também não tão distante. Ela continuava expectadora da rua e o gato também parecia ter se familiarizado comigo, uma vez que cochilava tranquilo no colo de sua dona.

__ Eles nos observam. Então, por favor, seja discreto e indireto. E principalmente, aja de modo natural. 

“Louca!”, pensei ao ouvi-la dizer aquilo. 

__ Não! Eu não sou louca. Só estou aqui há tanto tempo que já consigo pressenti-los. – e finalmente o rosto dela se vira para mim. Uma sensação de frio percorreu todo meu corpo e eu estremeci. Os olhos dela estavam nos meus eu poderia jurar que eram azuis. Mas não tenho ideia de como cheguei a essa conclusão com toda aquela escuridão. – Você já foi um deles. Mas deve estar por aí há muito tempo. Por isso, perdeu-se de si. Agora ficará por aqui, também. E vai caminhar pelas ruas até achar um lugar onde repousar, como eu. E verá que nada faz sentido fora daqui. Mas aqui, nesse mundo, as coisas são cada dia de um jeito e nunca sabemos como irão terminar.  – e um sorriso enigmático surgiu no canto de seus lábios no mesmo momento em que ela moveu seu corpo para frente ficando numa posição onde podia ver-me melhor. 

Era velha. Sim! Muito velha. Magra. Frágil. Pálida. Seus olhos eram claros, mas eu não posso mais afirmar se eram azuis. E a voz era marcante. Não sei defini-la exatamente. Porém, ela prendia-me na cadeira e calava minha própria voz. 

Devemos ter ficado em silêncio alguns minutos. Eu a observando e ela a mim. Ora ela sorria. Ora ficava quieta numa expressão firme. O gato parece ter se aborrecido com a situação e sentou-se a janela onde pude notar o negrume de sua pelagem. 

__ É um belo animal, não é? Veio para mim numa noite de lua cheia e ficou. Os gatos podem caminhar por entre os mundos. São almas tomadas de liberdade. E isso revolta o cão tão submisso ao seu dono. Claro que há os que não gostam do gato. Contudo, o que eles não gostam é da ideia de pertencer a um animal. Sim! Os gatos é que possuem. – e olhando-me tão profundamente ela me põe em xeque. – Importa-se de ser possuído, meu jovem?

__ Dependendo da situação...

Uma gargalhada alta e sonora ecoou na sala. Não condizia com a fragilidade aparente daquela senhora. O pior é que posso jurar que o gato participara daquela gargalhada em uníssono com ela. 

__ Você é fruto da possessão, querido. É por isso que está aqui. Junto com todos os outros. Você só existe por isso! Não se sinta menor. Também só existo por isso. E assim também é o nosso amiguinho Wade ali. Todos nós estamos aqui porque alguém lá foi possuído ou de raiva ou de amor ou de tristeza ou de alegria ou de dor... O sentimento não importa! O que importa é que nascemos desse momento. E ficamos aqui. Alguns ficam sem passado, outros sem presente. Futuro? Ah, nunca vi nenhum ter futuro. 

Ela parecia transtornada e confusa. Eu não via nexo no que ela falava. Parecia que ela delirava. Ou era eu que achava tudo aquilo ali completamente confuso. E foi aí que me dei conta de uma coisa... 

__ Como vim parar aqui? – disse em voz alta. 

E ela não me disse nada. Só continuou a olhar-me com seus olhos frios e seu sorriso misterioso. Levantei-me. Ela se recostou. Wade pulou no colo da sua dona como que para defendê-la. Passei a mão na cabeça. Percebi que não havia nada antes da minha imagem parada na porta a observar essa velha que agora me deixara tão louco quanto ela. 

__ Você não está louco! Acalme-se. 

Eu caminhava pela sala. Queria sair dali. Eu deveria ir embora. Voltar... Voltar para onde? Eu não sabia de onde tinha vindo. “O que está acontecendo?”, pensei. E meu peito apertou-se ao mesmo tempo em que meu coração acelerou. Sentia enjoo. A cabeça rodopiava. E ela paciente esperava que eu me acalmasse. 

__ A sensação do despertar é sempre essa. Mas com o tempo você se acostumará e verá as inúmeras possibilidades que há aqui. Acredite em mim. Nós estamos melhores aqui que eles do lado de lá. Aqui somos livres. 

As palavras dela chegavam aos meus ouvidos de modo profundo e complexo. Finalmente, sentei-me. Não que eu estivesse me acalmando, e sim porque as pernas fraquejaram. Tentava fixar meu pensamento em alguma lembrança anterior a minha aparição naquela porta, todavia minha cabeça era um nada absoluto. Só as últimas revelações da velha ecoavam dentro dela.

__ A liberdade que experimentamos do lado de cá é a nossa recompensa. Sinta-a. Absorva essa prazerosa sensação. – A voz rouca da velha foi ganhando força sobrenatural. O tom era quase hipnótico. - Deixe que ela entre pelos seus poros. Que percorra suas veias. Que alcance sua razão. Que envolva sua alma. – Ela fechou os punhos com tamanha força que eu pude notar suas veias da mão ressaltarem e gritou. – Liberte-se!

Algum tipo de trovão percorreu a sala. E eu notei que tudo escurecia ao meu redor. A última lembrança que tenho daquele momento era dos olhos amarelos de Wade dentro dos meus. Não sei se dormi ou desmaiei. Mas tenho certeza que foi por um longo tempo. 

                                              ...

Era tanta claridade que eu não conseguia abrir os olhos. Esforcei-me até que finalmente consegui. Fiquei um tempo ali deitado no chão sem entender onde estava. “Foi tudo um sonho!”, respirei fundo e fechei os olhos novamente. Lentamente e de olhos fechados me virei de lado. “Tudo aquilo foi um terrível pesadelo.”, conclui e sorri.

__ Seria reconfortante se fosse, não é mesmo? 

Levantei-me rapidamente e me deparei com o sorriso amarelado da velha. Agora podia vê-la nitidamente. Cabelos em coque no alto da cabeça. Pele sardenta. A mão tocou meus cabelos carinhosamente. 

__Venha comigo! – e ela passou seu braço pelo meu. E nos levou até a porta onde tudo isso começou. Eu só a acompanhava. Não tinha outra opção. Na varanda, notei um dia maravilhosamente ensolarado. Um jardim florido e muito bem cuidado era tudo o que separava a casa da rua que tinha outras casinhas simples exatamente como aquela. Em um banco, Wade espreguiçava-se gordo e lindo. 

__Vamos nos sentar ali.
__ Sim, senhora.
__ Está mais calmo? 
__ Não sei se essa é a sensação. 
__ Vai ficar em alguns minutos. Eles é que não ficarão. Mas eu os entendo. A inveja da nossa liberdade do lado de cá, os consome. Nunca terão o que temos. E mesmo que não se conformem com isso, sempre nos vigiam. Precisam alimentar-se de nós! Não nos afetam depois que chegamos aqui. Servimos de alimento para eles, de esperança, de mola de impulsão para suas vidinhas limitadas... Eles precisam de nós, mas nós independemos deles. 

__ Eu não estou entendendo nada. Me desculpe! Eu não sei nem mesmo como tudo isso começou. Estou confuso. Afinal, senhora, quem é você e quem sou eu?

Wade aproximou-se e pulou no meu colo. Assustei-me, mas acariciei o bicho que ronronou em agradecimento. 

__ Você é um de nós. – disse enfim... Wade. Sim! Wade disse-me isso. Wade, o gato negro da velha misteriosa. E uma sensação de desespero tomou-me de vez. Os dois riram e em coro disseram: vai começar tudo outra vez. 
__ O gato falou! Meu Deus! Eu morri! É isso! Estou no mundo dos mortos. Meu Deus! Como morri?
__ Você se sente morto?
__ Não!
__ Então...
__ Então, estou louco. É isso?
__ Se sente louco?
__ Não sei. Por favor, me responda.

Ela suspirou. Desses suspiros que se dá quando vamos pegar uma longa e cansativa jornada. 

__ Você nem morreu nem está louco. Pelo contrário, ontem você nasceu. Está com menos de 24 horas de vida. 
__ Como assim?
__ Ontem a noite alguém de lá foi possuído de uma vontade incontrolável de parir um ser novo. Alguém precisava expurgar alguma ideia e você nasceu dessa necessidade, dessa possessão. Você é fruto de uma ideia. Todos aqui somos. Meu nome é Amélia. Esse é o gato que nasceu de uma noite insone dela. Eu dei o nome de Wade porque significa “Andarilho”. Somos todos personagens dela. 
__ Personagens?
__ Sim! Fomos criados porque ela adora escrever. E vivemos aqui no mundo da Ficção em liberdade que nem ela nem eles têm. 
__ Quem são eles? Quem é ela?
__ Eles? Eles são os que nos imortalizam. Eles são os prisioneiros de nossa liberdade. Eles estão aqui até agora presos a nós por curiosidade de saber quem somos nós. E só se deram conta agora de que eles são os alvos dessa história. – risadas – Alguns ficarão muito bravos com ela. Mas ela é assim mesmo. Inusitada. Louca, dizem alguns. Contudo, eles voltarão de vez em quando para se alimentar de nós ou de outros. Nós os chamamos simplesmente de “Leitores”. São muitos não dá para lembrar todos os nomes. Nem mesmo ela que é do mundo de lá conhece seus nomes.
__ E afinal, quem é ela?
__ Waleska. Uma criatura taxada de louca desde menina. E no fundo, até acho que ela é. Todavia, é da loucura dela que nascemos. Esse mundo que você vê foi todo criado por ela. Esse jardim, essa rua, cada um dos moradores que aqui vivem somos todos filhos do mesmo cérebro, da mesma mente, mas não da mesma ideia. 
__ Então, eu sou só um personagem?
__ Não! Só uma personagem, não. Você é O personagem dessa viagem. E agora poderá ser o que quiser e morar onde quiser nesse nosso mundo. Eles irão embora e só ela sabe o que acontece aqui. 
__ Eu quero é comer algo porque estou com muita fome.
__ Concordo com ele, Amélia. Também, estou com fome.
__ Wade, você está sempre com fome. Vamos entrar e comer bolinhos de chuva com café. 

Eles se levantam e suas vozes vão sumindo junto com eles para dentro da casa. E quanto a você leitor, até a próxima vez. Tchau!
(Waleska Zibetti)

Sobre Produção Literária:
Deixe-me falar um pouco sobre a arte de escrever. Nunca me olhei como escritora e nem pretendo fazê-lo um dia. Olho meus escritos como uma necessidade na minha vida. E o meu processo criativo é viver, ler, pensar, ruminar e escrever.

Saio pelas ruas com olhos atentos ao detalhes, ao imperceptível a grande maioria. Permito-me atrasos se for uma prosa ou uma paisagem. Já corri muito até entender que Deus me deu pernas curtas para que andasse miúdo. Hoje, passeio pela vida. E passeando por ela vivo melhor.


Leio centenas de coisas e poucas me prendem. Os grandes autores me deixam frases soltas. Geralmente um livro inteiro desses caras me faz perder o tesão por eles porque são chatos. Leio os grandes como quem toma doses homeopáticas de um remédio qualquer. Sou feita de remendos literários. Um Frankenstein poético.


Depois de ingerida minha dose literária, penso, repenso, analiso, critico, discuto... Tudo comigo mesmo! "Coisa de gente aluada!", sentencia minha mãe. Eu sou aluada porque vivo por ali na lua, em Shangrilá, Oz, Xanadu, País das Maravilhas, Mundo de Sofia, Asteróide B612... Eu estou em universos longínquos e por isso mesmo tão consciente de minhas responsabilidades com esse mundo ao qual pertenço.


Então, é hora de pôr no papel tudo aquilo que ficou inquietando, tomando forma, revirando meus íntimo. A coisa volta na madrugada. Sou ruminante de ideias, de pensares. E despejo no papel minhas impressões de cenas cotidianas. Dou um título e jogo para o próximo que lerá, que pensará, que ruminará e explodirá em um ponto além do meu.

Escrever para mim é expandir-me. É o meu alongamento diário. E resumo essa arte, esse dom, da seguinte maneira: se aos lusos o navegar é preciso, aos loucos é necessário escrever.

Beijos literários a todos.

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