sábado, 8 de agosto de 2015

Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”, 1983



1-  Caprichos & Relaxos

“Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
(Paulo Leminski, in “contranarciso”)

Somos múltiplos e únicos. Confusos universos que se fragmentam e se agrupam. Não tenho nem começo nem fim. Nem sou eu sozinha e nem sou nós. O ser que existe é tudo.

“eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro do meu centro
este poema me olha”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)
Os olhos são os principais reveladores da essência. Queres-me conhecer? Arrisque-se! Me olhe.
“Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

“Coração” ganha forma e textura de acordo com o meio. De carinho ou de desagrado o “coração” vira pedra, vira pétala, vira aço, vira flor.

“sou um rio de palavras”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Todo poeta corre  em rio pela. Rio de letra. Nem sempre bem entendidas. Rio de emoções nem sempre respeitadas. Todo poeta é um rio que corre de amor na terra de gente que se mata.

“ali
bem ali
dentro de alice
só alice
com alice
ali se parece”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Respeitem, senhores, a individualidade de cada um e o mundo se tornará mais calmo, mais manso e gostoso de viver.

“nada tão comum
que  não possa chamá-lo
meu

nada tão meu
que não possa dizê-lo
nosso

nada tão mole
que não possa dizê-lo
osso

nada tão duro
que não possa dizer
posso”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

O que busco no amor é isso um “nosso” que é meu e teu. Como se um fosse o outro, mas não um só. Você é um eu com pedacinho meu. E eu um eu com pedacinho seu. Uma confusão que ninguém separa.

“Bom dia, poetas velhos.
me deixem na boca
o gosto de versos
mais fortes não farei.”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

A boa literatura me faz chorar até me perder do tempo. Me pego tantas vezes do nada citando Vinícius, Florbela, Clarice, Neruda, J.G. etc...Eles correm em mim sem que eu tome consciência. Tão meus...! E eu, tão deles!

“enxuga aí

vê se enxerga

essa lágrima
eu deixei cair

examina

examina bem

vê se não é
água da pedra
ouro de mina
essa gotadágua

minha
obra-prima”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Respeitem as lágrimas ainda que não sejam argumentos, de certo são sentimentos.

“objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ando e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Amar a distância dói. Amor não correspondido dói. Amor bem vivido dói. Amor mal acabado dói. Amar dói. Não amar dói mais ainda.

“tanto mim me pareça você”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

No máximo do amor a entrega é completa, mas desequilibrada. Sempre um ama mais. E esse é o que sofre. Coitadinho! No máximo do amor um “eu” fica suspenso em prol do outro, o que mais se doou o que mais se esqueceu. Não do outro, mas de si.

“quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Apaixonei! Ainda bem que não chegarei aos setenta. E todos dirão quase que poeticamente “morreu na adolescência”.

“Vocês nunca vão saber
quanto dói uma saudade
quando perto vira longe
quanto longe fica perto”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

Por que se arrasta o fim de tudo? Se eu não existo mais nele e ele não mais existe em mim. Por que não dizer adeus, enquanto ainda é fácil? Se não me tens em seus olhos e tu já não estas mais nos meus. Só fica essa coisa que pergunta “Onde está o que já fomos?”. E o silêncio dolorido respondendo frio “Fomos... Mais não somos!”.

“elas quando vêm
elas quando vão
versos que nem
versos que não
nem quero fazer
se fazem por si
como se em vão”
(Paulo Leminski, in “Caprichos & Relaxos”)

O poeta aborta sentimento em versos. Amputa dores em rimas. O poeta é realmente uma criatura divina. Que fala bonito daquilo que não há quem defina.

2-     Polonaises

“aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
pra ser olhando

foi mar
pra tudo quanto é lado”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Quantos olhares perdemos por não termos tempo de olhar.

“Um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar

me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar

a este adeus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro

nele cresça
até virar vendaval”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Acho que de todos os elementos o vento será sempre o mais especial para mim.  Ele pode ir a todos os lugares onde eu nunca irei. Ele sabe de cheiros que nunca sentirei. Deve ser demais ser vento em lugares como Marrocos, por exemplo.

“tenho andado fraco

levanto a mão
é uma mão de macaco

tenho andado só
lembrando que sou pó

tenho andado tanto
diabo querendo ser santo

tenho andado cheio
o copo pelo meio

tenho andado sem pai

yo no creo em caminos
pero que los hay
                                 hay”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Tenho andado com essa mesma sensação de estar ao “meio” de si.

“todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

E viva a loucura boa de cada dia. Amém!

“me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão”.
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Não me enterre em lugar algum. Não há se quer um pedaço desse chão que tenha me acolhido como meu. Sou do ar. Sou do “por aí”. Lancem-me ao vento, pelo mar e esqueçam, então, de mim.

“meu coração de polaco voltou
coração que meu avô
trouxe de longe pra mim
um coração esmagado
um coração de poeta”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Coração de poeta já nasce doente. Tenha pena dele, minha gente!

“lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça”
(Paulo Leminski, in “Polonaises”)

Lembre de mim como quem sentia a chuva como bênção do céu e a vida sempre a beira de um abismo.

3-     Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase

“ apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Que seja o para sempre muito mais que o agora. Que sejamos nós muito mais que a eternidade. E que nunca chegue o momento de sermos lembrança no viver do que ficou.

“coração
PRA CIMA
escrito embaixo
FRÁGIL”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Não cuidaram. Não entenderam o recado. Coração PRA BAIXO escrito em cima QUEBRADO.

“que tudo passe

passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
e passe a paz

passe o que nasce
passe o que nem
passe o que faz
passe o que faz-se

que tudo passe
e passe muito bem”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Porque nada é mesmo feito para ficar. Nem eu, nem tu, nem ele. Nessa vida somos todos passarinhos.

“em la lucha de clases
todas lãs armas son buenas
piedras
noches
poemas”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Me atirem somente pedras poéticas!

“você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

A minha maior ambição é um dia poder voar. Depois me sentar na ponta de um sorriso para pescar versos no céu da boca de alguém que me ame.

“não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Se aceitarmos a ideia de destino, não tempo como discutir com ele. Tudo torna-se inevitável.

“confira

tudo que respira
conspira”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

O ser humano é o animal do conflito. Dê-lhe a lua e ele lutará pelo sol. Infelizes bélicos!

“nascemos  em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas e minha a tua a nossa linha”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Poeta se apaixona por poema e dentro do universo  ele dura e morre poesia.

“Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em nada.”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)
Perdi as contas de quantos ex-amores há nos meus versos. Poeta ama demais. É pré-condição para existir. Mas não tenho raiva de nenhum. Os acho bonitinhos assim rimados. Eles é que me rasgam.

“parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é de deus

eu sou o seu profeta”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)

Poeta é um marginal de si, da vida, do mundo. É o que chora e o que ri para que os outros tenham o indizível impresso na folha em branco.

“à noite
fantasmas das coisas não ditas
sombras das coisas não feitas
vem
pé ante pé
mexer em seus sonhos”
(Paulo Leminski, in “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”)



É na madrugada que os cães gritam e que nosso íntimo uiva. O medo do escuro. O medo da noite. O medo do mundo.
(Waleska Zibetti)