Depois de ler vários autores que usam
James Joyce como referência decidi eu mesma lê-lo. E escolhi a obra “Os Mortos” originalmente
publicado em 1907. E abri o livro na expectativa de um
grande acontecimento e me deparei com um acontecimento banal. Uma soirée anual das
Senhoritas Morkan que são tias e prima do personagem principal Gabriel Conroy.
Uma festa de fim de ano muito bem organizada, com músicas, danças, e uma ceia,
o auge do entretenimento burguês.
Apesar
de contada em terceira pessoa, a história possui um ponto de vista principal
que é o de Gabriel que nitidamente sente-se superior aos demais participantes
da festa por ser um homem mais intelectualizado e mais
“continental” do que arraigadamente irlandês, como fica claro na
preparação de seu discurso onde ele exalta a
“hospitalidade” como uma qualidade nativa dublinense. Vale
ressaltar aqui que Gabriel é alvo de várias
gafes ao longo da narrativa onde ele parece querer mostrar o melhor da sua
natureza. Por exemplo, ele faz uma observação até um pouco paternal à jovem Lily
que é a serviçal da festa e acaba levando um carão, dança uma quadrilha com a
Srta. Ivors que o espicaça como escritor anglófilo.
E
tudo transcorre como deve ser: com os chatos de plantão, parentes bêbados inconvenientes
e chatos, a prima que toca uma peça ao piano, os comentários normais, a
nostalgia dos velhos, a despreocupação dos jovens, uma velha amiga
intrigueira... Enfim, tudo corre conforme o esperado. Conforme vai amanhecendo,
uns convidados se vão e outros seguem no salão, cantando árias irlandesas.
Gretta, a esposa de Gabriel, os ouve a canção enlevada enquanto Gabriel mal
ouve a letra.
Ao
chegarem ao hotel onde eles estão hospedados, Gabriel procura pela mulher que
parece distante, abstraída, inquieta. Ele insiste em saber o motivo e descobre
pela esposa, que a velha ária tocada ao fim da festa a lembra de Michael Furey, já morto que teria sido
seu primeiro amor. Chocado com a revelação Gabriel começa a repensar seus
últimos e seus próximos passos. Como vencer um
amante morto? Que pode Gabriel contra o ímpeto de se impor a essa figura do
passado? Pois o passado não é apenas o território das perdas, no sentido de
mortes pessoais, mas das perdas, no sentido de possibilidades que não voltarão.
Algumas coincidências não são à toa nessa narrativa e foram
construídas para acentuar esse momento de inquietação de Gabriel. Por exemplo,
devemos notar a excitação de Gretta quando o casal é convidado para uma viagem
a região onde a Gretta pela última vez esse ex-amor,Michael Furey, na neve. Ou
seja, todos os elementos da narrativa se
ligam e se entrelaçam nos mínimos detalhes da trama.
“Os Mortos” fala sobre a consciência da
mortalidade numa trama onde os protagonistas não são jovens. Gabriel, em
especial, está na meia-idade. James Joyce o fez com maestria, mesmo porque a
maioria dessas conscientizações de vida decorre de acontecimentos banais, à
primeira vista. Em “Os Mortos” o jantar da família Morkan, Joyce deixa bem
claro, acontece todos os anos há vários anos com os mesmos pratos servidos, as
mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas. Ou seja, o tipo da rotina que faz com
que esqueçamos que as pessoas podem não estar mais lá no próximo evento.
A
descrição dos acontecimentos é feita no mesmo tom ordinário e comum. São
pessoas reais, vivendo sua vidinha, sem pensar muito em si e no futuro. Sem
mesmo buscar conhecer melhor as pessoas próximas tanto os estereótipos se
arraigaram. E o choque de Gabriel é grande quando ele percebe que tudo pode
acabar um dia. James Joyce te envolve de tal maneira no cotidiano, que não se
espera o impacto do desfecho. O leitor fica sem chão, ciente da própria
mortalidade e da mortalidade dos outros. Eu diria que esse é um conto que deve
ser relido de tempos em tempos para que não nos esqueçamos de que tudo na vida
uma hora chega ao fim.
(Waleska Zibetti, in "Os Mortos de James Joyce")