quarta-feira, 28 de maio de 2014

Dona Clô



Nunca segui os conselhos de minha mãe que me dizia: “não converse com estranhos”. Gosto de conhecer pessoas! Em todo lugar que vou, sempre puxo assunto com alguém estranho. Em especial as pessoas mais simples: pescadores, idosos em banco de praça, vadios, prostitutas, bêbados... Essas pessoas são como eu de certa forma. São viscerais e com histórias que mudam as nossas histórias. Numa dessas conversas conheci a dona Clô.

Ela era uma senhora muito bonita apesar da idade, e elegantemente vestida que encontrei por acaso na fila do banco. Cabelos bem cuidados e pintados, unhas muito bem feitas e perfumada. Falamos sobre o tempo lá fora. Uma chuva assolava a cidade há dias e pessoas já perdiam casas e todas as suas coisas. Dona Clô contava-me do seu medo de chuva. “Tenho trauma!” - resumiu ela e em seu trauma se calou. Fiquei imaginando qual seria o trauma, mas não quis perguntar. Só sorri como se sorrindo eu ficasse cúmplice de seu trauma. Então, ela pagou suas contas e se foi carregando seu trauma pelas calçadas molhadas. E eu, também.

Passado uns dias, eu caminhava de manhã pela rua e reparei em uma pessoa que me pareceu conhecida. Que surpresa! Era dona Clô. Apressei o passo – com sorte ela me reconheceria. Ela estava tão simples naquele dia. Tão diferente da senhora que conheci no banco: usava calça legging, camiseta, boné e tênis. Contudo, sustentava ainda seu ar elegante e um olhar firme que os óculos de sol não escondiam.

__ Bom dia! – disse com um sorriso.

Dona Clô, olhou-me um pouco e sorriu. E no seu sorriso havia acolhimento.

__ Bom dia, mocinha do banco. Como vai?

E começamos a conversar novamente. Hoje sobre o sol escaldante que levava risos à praia. Paramos em um quiosque fomos tomar uma água de coco. E então, conheci mais de uma dona Clô sem traumas. Rimos e combinamos de caminhar por ali na manhã seguinte.

E por algum tempo essa foi a nossa rotina: encontrarmo-nos no calçadão para uma conversa a toa enquanto caminhávamos. Dona Clô contava coisas do seu tempo e dizia sempre que o tempo passado era o melhor de viver. Afirmava que um dia eu entenderia. Um dia em que ela não estaria mais ali, mas que eu me lembraria das palavras dela e diria “bem que aquela matusquela me avisou!” e demos gargalhadas do “matusquela” que ela complementou com “palavra de velho”.

Um dia dona Clô convidou-me para ir a sua casa jogar buraco e eu fui. Conheci lá outras senhorinhas sorridentes como dona Clô. E logo fui adotada como a netinha da turma. Elas eram muito animadas e simpáticas. Cada uma delas com seus traumas, com suas histórias e seus mistérios, mas todas tão cheia de vida e esperança que me deixavam como elas, vibrante.

Passávamos a tarde a jogar buraco, bingo, 21 a valer bombons, dançávamos, cantávamos ao som do piano de dona Clô, o violão de dona Cláudia e a voz vacilante pela idade de dona Leda – a mais velha do grupo. Elas me diziam que eu saía dali cheirando a naftalina e formol. Mal sabiam elas que o cheiro delas era tão mais vivo que o meu em alguns dias. No fim da tarde eu ia embora renovada, remoçada na experiência delas.

Um dia dona Clô pediu que eu ficasse um pouco mais para tomarmos um cálice de vinho do porto. E eu fiquei.

Depois que todas elas se foram, sentamos na varanda com nossos vinhos. Dona Clô então segurou a minha mão e disse que naquele dia ela estava se sentindo muito só. Que o passado estava doendo dentro dela. Um passado de plumas e brilhos, mas que agora pairava cinza de tristeza dentro dela. Eu só apertei a mão dela, não sabia o que dizer. De repente, toda a idade de dona Clô pesava-lhe a face e eu me dei conta de que ela já tinha mais de setenta.

Ela apanhou um baú antigo cheio de fotos amareladas e algumas até desfocadas, cartas, cartões, pétalas de flores secas, papéis de bala enroladinhos, cachinho de cabelo, uma pluma que devia ter sido azul em uma época qualquer, mas que agora era tão velha quanto dona Clô... Disse-me, então, depois de um silêncio pesado: “Veja o meu passado! Ele cabe todo em uma caixinha.” E sorriu.

Na caixinha uma dona Clô sem rugas e vestida de vedete com poses, me sorria. Olhei cuidadosamente cada uma das centenas de fotos e ouvi algumas das histórias que elas continham. Histórias alegres e tristes. Reconheci ali outros sorrisos joviais: o de dona Leda e de dona Cláudia. “Mais que amigas... minhas irmãs.” – dizia dona Clô com olhos cheios de lágrimas e mãos trêmulas.

Dona Clô me contou que ela era vedete e dançava em um antigo cassino. Foi lá que ela conheceu certo militar de alta patente que lhe deu tudo o eu tinha, menos um filho. Ele não queria e nem podia arriscar a ter um filho fora do casamento porque seria um escândalo e ela respeitou. Só que, segundo ela, ela não imaginava que na velhice ela sentiria tanta falta de um filho. Ela disse que quando se é jovem, às vezes, esquecemos que vamos envelhecer e que na velhice a solidão é contada em segundos, pois o tempo fica caduco como os velhos. Quanto mais dona Clô falava mais eu bebia as suas palavras com o vinho do porto. Foi uma tarde incrível! Mágica!

Minha amizade com dona Clô era assim, mágica. Era cercada de coisas glamorosas e de sentimentos que se revelavam como a lua que víamos brotar do céu enquanto bebíamos vinho do porto na varanda. Eram tardes com tardes dentro. Tardes de um passado lindo e cheio de vida de uma pessoa que exalava vida em tudo que fazia e dizia.

Hoje, eu vi dona Clô ser sepultada sobre o choro contido de dona Leda e dona Cláudia. Elas, depois que todos se foram, ficaram ali cantando a canção que elas diziam ser o hino da amizade eterna entre elas. E eu as abracei com muito carinho para engrossar o canto:

“... Amigos para sempre é o que nós iremos ser
Na primavera ou em qualquer das estações
Nas horas tristes nos momentos de prazer
amigos para sempre...”

Dona Clô se foi. Tenho certeza que virou estrela. Uma estrela brilhante e cheia de vida que vai iluminar as minhas noites ao lado de dona Leda e dona Cláudia. E que um dia formará uma nova constelação quando essas duas estrelinhas se forem também. E nem assim ficarei triste. Elas que me guiarão para sempre nas palavras que me disseram, em canções que me ensinaram, em meu coração onde elas serão eternas vedetes sorridentes.

Amigos são para sempre!

(Waleska Zibetti)

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