domingo, 17 de maio de 2015

A Partida



Agora que os dedos da Morte à roda da minha garganta

Sensivelmente começam a pressão definitiva...

E que tomo consciência exorbitando os meus olhos,

Olho p'ra trás de mim, reparo pelo passado fora

Vejo quem fui, e sobretudo quem não fui

Considero lucidamente o meu passado misto

E acho que houve um erro

Ou em eu viver ou em eu viver assim.

Será sempre que quando a Morte me entra no quarto

E fecha a porta a chave por dentro,

E a coisa é definitiva, inabalável,

Sem Cour de cassation para o meu destino findo,

Será sempre que, quando a meia-noite soa na vida

Uma exasperação de calma, uma lucidez indesejada

Acorda como uma coisa anterior à infância no meu partir?

Último arranco, extenuante clarão, de chama que a seguir se apaga

Frio esplendor do fogo de artifício antes da cinza completa,

Trovão máximo sobre as nossas cabeças, por onde

Se sabe que a trovoada, por estar [...], decresceu.

Viro-me para o passado.

Sinto-me ferir na carne.

Olho com essa espécie de alegria da lucidez completa

Para a falência instintiva que houve na minha vida

Vão apagar o último candeeiro

Na rua amanhecente de minha Alma!

Sinal de [..]

O último candeeiro que apagam!

Mas antes que eu veja a verdade, pressinto-a

Antes que a conheça, amo-a.

Viro-me para trás, para o passado, não [visiono? ];

Olho e o passado é uma espécie de futuro para mim.

Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio

E a quem depois abandonei como um espantalho reles,

Hoje reconheço o erro, e choro dentro de mim,

Choro com a alegria de ver a lucidez com que choro

E embandeiro em arco à minha morte e à minha falência sem fim,

Embandeiro em arco a descobri-la, só a saber quem ela é.

Ergo-me em fim das almofadas quase cómodas

E volto ao meu remorso sadio.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 27a.

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