quinta-feira, 30 de abril de 2015

O Fabuloso destino de Amelie Poulain


Toda a narrativa é permeada por uma lógica do absurdo. Absurdo que serve nunca para causar estranhamento, pensamento crítico, mas apenas para entreter o espectador com nonsenses inócuos. A história da menina tímida que vive isolada pelos pais é salpicada de pequenas imagens que buscam apenas um desenfreado esvaziamento dos sentimentos. Alienado da vida cotidiana, o filme se mostra como a tentativa (infelizmente, alcançada) de transformar todos os eventos em uma ferramenta narrativa para fazer rir, para fazer gracinhas de forma açucarada. Uma espécie de Poliana pós-moderna, a menina tem uma grande bondade no coração e resolve se dedicar à ajudar os outros em suas vidas, nas dificuldades alheias que ela identifica.
Sinopse: Após deixar a vida de subúrbio que levava com a família, a inocente Amélie muda-se para o bairro parisiense de Montmartre, onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia encontra uma caixa escondida no banheiro de sua casa e, pensando que pertencesse ao antigo morador, decide procurá-lo ­ e é assim que encontra Dominique (Maurice Bénichou). Ao ver que ele chora de alegria ao reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e adquire uma nova visão do mundo. Então, a partir de pequenos gestos, ela passa a ajudar as pessoas que a rodeiam, vendo nisto um novo sentido para sua existência. Contudo, ainda sente falta de um grande amor.
É preciso sempre acreditar e se dar a chance de viver um novo, e quem sabe, verdadeiro amor.
 
Opinião: Aquele amor dos nossos avós...
Hoje em dia é raridade encontrar isso, pois as pessoas aprenderam a substituir as coisas quebradas, as relações frustadas por outras, assim sem ao menos parar e tentar consertar, acertar os erros e tentar novamente. 

Quando percebemos que há uma total indiferença pela Persona de quem se vê – o que vale é sua aparência física, a queda absurda, hilária... Filmes como A Poulain contribuem para que a imagem do cinema cada vez mais perca sua força, criando espectadores totalmente anestesiados. Todo o sofrimento sofrido pelas personagens são motivo de ironia rala que vende as boas intenções e o olhar cool descolado com que Amélie observa o mundo – fazendo o mundo, manipulando-o como bem quer. A aura de boa menina de Amélie é extrapolada em todas as cenas e defendida pela narrativa: seus atos bondosos têm bons resultados!
Os pequenos prazeres diários. Talvez a vida seja composta 20% de grandes momentos e 80% de rotina. As grandes viagens, os aumentos de salário, os nascimentos de filhos e os dias de casamento são o tempero da existência – o refrigerante de domingo numa vida de arroz e feijão. Mas arroz com feijão não pode ser bom?
Sempre achei que as pessoas que viviam mais tempo eram as que cultivavam pequenos prazeres nos jardins de suas vidas. Pessoas que envelheciam sem que sua única diversão fosse a televisão ou as visitas de sua família.
Acho que essa filosofia do prazer no cotidiano nos permite uma existência feliz mesmo que não tenhamos condições de vivenciar o fantástico. Podemos, como ensina a teoria do flow de Mihaly, procura criar o fantástico dentro de nós e das atividades que amamos.

Trailer:
 
 
E aí, pronto para criar um pequeno espaço para a felicidade na sua vida?
Assistam e me contem depois!
Até o próximo texto
Au Revoir

terça-feira, 28 de abril de 2015

A PROTAGONISTA

por Gabriella Gilmore


Numa sexta qualquer, resolvi pegar um ônibus e ir visitar alguns amigos na cidade de Poços de Caldas.
Encontrei sentada num banco, uma senhora dos cabelos brancos, da pele alva, olhando a plataforma 22.
Não sei porquê, mas me bateu uma imensa vontade de sentar-me ao seu lado e puxar papo.
Ali, eu descobri que fazia 34 anos que ela ia àquela rodoviária toda sexta-feira às 17hrs para esperar pelo único amor que ela teve na vida.
Perguntei se ela tinha filhos, marido, e ela balançou a cabeça afirmando.
A protagonista tinha quatro filhos e seis netos. O esposo morrera há cinco anos.
Eu não entendi.
Perguntei a ela quem seria a tal pessoa de 34 anos atrás que fez com que ela viesse religiosamente todos os dias para a rodoviária a espera de um encontro.
_ Ela se chamava Bel. Há 34 anos, eu combinei com essa amiga que tanto amei, de nos encontrarmos aqui.
Ela abaixou a cabeça com os olhos brilhando.
_ Mas... Eu indaguei baixinho.
_ Naquele tempo combinamos de ficarmos o final de semana juntas. Comprei algumas coisas que eu sabia que ela gostava, enchi a geladeira com coisas que eu não importava só para agradá-la, e dois dias antes, recebi um telefonema dizendo...
_ Ela morreu! Falei arregalando os olhos.
_ Não.
_ Mas o quê que aconteceu?
_ O destino nos separou numa forma injusta. Nunca consegui aceitar isso e desde aquele dia eu venho fazendo tudo que fiz naquela semana, na esperança de ...
Ela se levantou ansiosa e lenta, quando me perguntou:
_ Como se chama?
_ Isadora Martinez. E a senhora?
Ela subitamente se voltou para mim, me encarando nos olhos e perguntou:
_ Martinez de onde, minha filha?
_ Poços de Caldas.
A velha fraquejou, titubeando.
Levantei-me para segurá-la.
_ Isabel Martinez. Sussurrou a protagonista. Minha amiga de Poços.
Senti-me tonta ao escutar aquilo, porque seria coincidência demais aquela Isabel ser a minha mãe.
Abracei a protagonista, e disse:
_ Estou aqui. Vou te levar para casa.
Só assim, aquela senhora mudou sua trajetória triste. Só assim, ela percebeu que as histórias por algum motivo não se cruzaram.
Talvez nunca entendamos o motivo. As respostas nunca seriam o bastante.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Em Vermelho



Ela pintou a boca de vermelho e ficou quase imóvel esperando ele chegar e buscar. As horas passaram e ela ainda esperava por ele. A noite chegou e ela cansou de esperar. Fez um envelope de guardanapo branco e guardou dentro o beijo vermelho que ele não veio buscar. Dobrou com cuidado, lacrou com uma lágrima e foi dormir.
(Waleska Zibetti,  in "Em Vermelho")

domingo, 26 de abril de 2015

A Face da Morte - Texto Resposta a Gabriela Gilmore



Todos os dias menos um dia
Uma linha em direção ao inevitável
Milhões de células mortas maculam meu chão
Sou eu me despedindo
A morte chegará um dia no portão
Beijará minha boca apaixonada
Espero que seja numa tarde de verão
Quem vai chorar?

Todos os dias mais um dia
Uma ida para o desconhecido
Milhões de horas se passando
Enquanto gravo alguns instantes
A morte se sentará um dia em minha sala
E se servirá de meu pavor numa taça de cristal
Espero estar ouvindo blues
Quem vai se importar?

Todo o dia um dia final
Uma despedida das certezas e das vontades
Milhões de planos pelo chão
E pouca vontade de realizá-los
A morte me aninhará em seus braços
Conforto para meu desespero
Espero estar distraída
Quem notará a ausência?

Todo dia é inevitável o desconhecido
Uma despedida de milhões de células
Enquanto gravo meus planos no chão
Sou eu em alguns instantes
E a morte no portão
Minha boca apaixonada em minha sala
Conforto de tarde de verão
Ouvindo blues distraída

Quem se comoverá?
(Waleska Zibetti)

sábado, 25 de abril de 2015

A CARA DA MORTE


O post de hoje conta com um conto de João Zibetti, que também é leitor do #CLV

"Jão", como costumo chamá-lo, de vez em quando  me manda link de textos que ele escreve. Algumas semanas atrás quando li o conto que vou citar no final do post, eu logo pensei: "JÃO! Vou escrever algo falando de morte, queria publicar seu texto". E aqui estamos nós.
Espero que gostem do post de hoje.

Filosofias e religiões diferentes nos oferecem ideias distintas sobre a morte e suas dimensões espiritual e pessoal. Na era moderna, embora a medicina tenha critérios precisos para determinar quando a morte ocorreu, os médicos ainda debatem sobre o significado exato do que é morrer.

A MORTE EM OUTRAS CULTURAS

Embora sejamos acostumados a pensar na morte como uma clara fronteira, essa linha divisória pode variar surpreendentemente entre as diferentes sociedades. Em algumas culturas, acredita-se que os cadáveres mantenham um princípio vital muito depois de os médicos ocidentais declararem a morte.
Os tibetanos têm a tradição de entoar o Livro Tibetano dos Mortos durante 49 dias após a morte de uma pessoa – eles acreditam que é esse o período entre a morte e o renascimento através da reencarnação. Eles entoam cânticos para o corpo e o espírito durante uma semana depois que o indivíduo pára de respirar, e continuam a fazer o mesmo diante de uma imagem do morto depois que o corpo é enterrado.
Na crença islâmica, a morte é considerada a separação entre a alma e o corpo; e como a alma habita todas as partes do corpo, uma pessoa pode estar “viva” mesmo após a morte cerebral ter sido diagnosticada.
Retrocedendo na história até a época de Cristo, o povo judeu acreditava que a alma permanecia no corpo até o terceiro dia após a morte (contando o dia da morte como o primeiro - daí advém o significado da ressurreição de Jesus “no terceiro dia”: se acontecesse antes, ele não teria sido considerado verdadeiramente morto.
Muitas sociedades depositam fé na presença contínua dos mortos como membros da ordem social, com direitos e obrigações. Já outras culturas tratam alguns dos vivos como se estivessem mortos – por exemplo, se sofrem de determinada doença ou ignoram um tabu social importante. Sem dúvida, a morte tem uma dimensão social como médica – você está morto quando sua sociedade assim o considera.


Créditos: Reader’s digest (Maximize o potencial do seu cérebro)


                 Ultima Carta de Um Vilão
por João Zibetti

"Talvez até a morte tenha seu lado bom, um lado simpático... Mas eu não.
Desde que me entendo por gente, sonho em ter o mundo em minhas mãos. Em mandar e desmandar. Em criar e destruir todos os que se opõem a mim. Desde pequeno sonho com a glória de ser chamado de tirano, de monstro, de cruel. Tudo isso porque sempre me vi melhor que os outros seres humanos. Todos são idiotas demais, nada mais justo que eu os governe. Mas eles não sabem escolher o que é melhor para eles.
Desde que me entendo por ser vivo, eu não temo a morte. Gosto dela. Eu a acho divertida, sarcástica e irônica. Talvez porque eu nunca tenha morrido. Porém não entendo porque as pessoas a temem tanto. Acostumei-me a ela desde o momento que jurei guerra contra todos os prepotentes imbecis que se auto proclamam “heróis”, mandei vários de presente para ela.
De tanto viver ao seu lado não percebi que ela se aproximara demais, e agora estou aqui de frente para esse espelho, preso em meu próprio quarto. 
Atrás da porta me espera um maldito moleque... Um maldito herói. Como odeio “heroizinhos”. Seres patéticos. Odeio heróis. Odeio com todas as minhas forças... Que já não são muitas...
No espelho vejo meu sorriso, que na minha infância era considerado um sorriso de loucura, mas eu sempre o achei tão atraente! Assim como meus olhos. Enquanto eu amo meus olhos, as pessoas o temem. O temem como temem a Morte. Vêem uma crueldade insana nos meus olhos e sorriso. Acho que é por isso que os amo tanto.
Ouvi um barulho na porta. Quero ter certeza de que tudo que fiz foi certo. Foi... Pelo menos para mim. Consegui tudo o que sempre quis: poder, estátuas em minha honra, o temor de todos, mandei para os anjos algumas pessoas mais cedo. Não me arrependo de nada.
Mas depois de um tempo fica tudo muito chato. Nem matar nem torturar me trazem a alegria de antes. Acho que esse deve ser o problema da imortalidade. Veria tudo acontecer milhares de vezes e sempre saberia onde acertar. Seria um inferno!
De novo o “herói” tenta abrir a porta. Meu sorriso está ainda mais louco. Acho que sei o porquê... Minha velha amiga, a Morte, está se aproximando e eu sei que ela vem me buscar. No espelho o meu rosto já está cansado, eu já estou velho demais para essas brincadeirinhas de criança.
Durante anos cacei esses infelizes que se dizem heróis, agora eu já não aguento nem lutar contra um. Devo estar louco, devo estar problemático, devo matá-lo agora... Ou morrer tentando.
Ouço meu ultimo trovão, a magnífica obra da natureza.
Quero que se lembrem que eu não me arrependo de nada. Quero que saibam que odeio heróis. Quero morrer e ser lembrado como um louco tirano que foi recebido com um trono no inferno.
Até a morte tem seu lado piedoso, um lado humano... Mas eu nunca.”
Ele pegou a espada no canto e com os pés abriu a porta do quarto pulando em seu inimigo com a espada em punho. Ele não esperava a cavalaria que vinha atrás do herói. Foi derrotado antes de conseguir o triunfo de seu ultimo ato. Os soldados depois da batalha olharam para a cidade em chamas.
O “monstro” podia ter morrido, mas seu sorriso e seus olhos refletiam o orgulho do dever cumprido.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Homem Passarinho



Ele era um homem que não gostava de pessoas. Isolava-se dentro de sua casa, de seu jardim, tudo solitariamente cinza. Observava os movimentos da rua, mas não tinha a menor vontade de juntar-se a ele. Preferia o silêncio de sua sala sem televisão e com centenas de livros. Todos antigos, cheirando a bolor, amarelo-cansaço como ele próprio diante da vida.

A única coisa que o fazia sorrir era observar os pássaros que passavam sobre sua casa, que pousavam nos fios da rua ou temporariamente no chão do quintal. Ao notar a aproximação ele colocava-se tão imóvel que parecia não respirar. Era preciso que os pássaros não se assustassem, não o percebessem, não fugissem dele... Enquanto estavam por perto seus anos voavam para longe e ele era menino a jogar milhos aos pombos ao lado de seu pai. Menino correndo em piruetas no meio dos pombos a sorrir em liberdade. Menino-pombo, menino-voador, menino-passarinho...

Certo dia ele amanheceu em sua escrivaninha de madeira escura-pensamentos e decidiu sair para passear. Vestiu-se de preto-seriedade e perfumou-se de almíscar. Andou pelas ruas que ainda dormia olhando as casas de sua vizinhança. Nas árvores pardais comentavam o estranho passeio do velho. E ele olhava para as copas das árvores esforçando-se para sorrir. “Eu posso me mover, amiguinhos, mas não lhes farei mal algum”, assoviava. 

Caminhou até chegar a pracinha que amanhecia dourada de felicidade. E sentou-se no banco para observar os primeiros pombos chegarem ao local. Enfiou a mão no bolso e tirou um saco de saudade e começou a atirar aos pombos. Os grãos escorregavam em volta dele e ele observava seus amigos se aproximarem arrulhando “obrigados”. Ele sorria feliz. 

Encostou-se no banco de braços abertos olhando o céu. Revoadas de andorinhas passaram em arruaça tremenda. Nuvens brancas começaram a tomar forma do rosto do velho pai. E o pai sorriu para ele como fazia ao vê-lo no meio dos pombos quando ele ainda era um menino. E ele gargalhou sonhos que ecoaram na praça dos pombos. O sol atingiu-lhe o rosto envelhecido turvando a visão. 

Pássaros de todas as cores e tamanhos se aproximaram dele fazendo gracinhas a sua frente. Queriam agradar-lhe. Queriam fazê-lo sorrir. Eram pássaros de todas as espécies vindos não se sabe de onde a brincar com o menino passarinho na manhã de paz. Até que ele se levantou correndo entre os pássaros, rodopiando-passarinho, menino de asas... E os pássaros iam lado a lado acompanhando o amigo em seu voo despedida pelo céu azul-liberdade. 
(Waleska Zibetti, in "Homem Passarinho")

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A casa tomada

 
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
 
Julio Cortázar.
 
Ramal, Alicia (organização e tradução). Contos Latino-Americanos Eternos, Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09.
 
Até o Próximo Texto
Au Revoir. 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

PONTE PARA A CIDADANIA



A arte como ponte – Cidadania

Texto publicado primeiramente em 2008 por Gabriella Gilmore.

Ser cidadão é mais do que saber sobre as leis e deveres, é faze-la cumprir, é ter mente idealista; aquele que se incomoda com o jeito de como anda a situação e que não se cala, age.
O problema da sociedade é que ela se acomodou. Se liga mais no resultado do que no processo de como foi feito a ação. Se tornou covarde e prefere morrer calada em meio a hipocrisia do que viver pregando uma ideia que para uns é utopia. Somos responsáveis por todas as nossas ações e ela reflete numa  distancia quilométrica, porém preferimos nos fazer de cegos.
Humanidade esta, que se importa mais em levar cientistas para marte, gastando bilhões, do que ajudar as pessoas que já nem tem mais lugar aonde morar, que vive da sorte. porque esperanças não há. (José Saramago)
Pensamos que com o avanço da ciência e tecnologia tudo iria melhorar. Mas o poder nas mãos de pessoas egoístas é assassinato. 
Criança sem infância sadia que já não solta pipa na rua ao sol. Adolescentes que preferem dialogar com a fria tela do computador e jovens se matando por uma alegria artificial.
Podemos reverter este quadro sim, usando a arte como ponte, levando cores, harmonia, ritmo, letras às crianças, pois elas são a nossa esperança.
Descobrir a qualidade perdida daquele jovem sem ânimo e fazer com que ele esqueça seus defeitos e possa ouvir suas virtudes, mesmo que seja uma só. Esta é a luz que brilha em meus olhos e que há de reluzir no mundo, muito antes que marte.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Lembranças Viventes


Vez por outra meus olhos passeiam pelo seu quarto e vejo minhas roupas cansadas do dia descansando ao chão...
 Elas parecem tão em paz mesmo amontoadas as pressas com o desespero de ir para onde estão... 
Mas como... 
Ei... 
Sou organizado... cada coisa no seu lugar. 
Foi assim que aprendi... 
Me indago elas estão desorganizadas?
 Não encontro respostas simples só sentimento que mesmo no caus da pressa em se despir elas e eu encontramos paz. 
No mesmo instante no calor do seu quarto você me aquecendo me indaga esta com calor? 
Quer que eu me afaste... 
Indignado digo este seu calor me aquece a alma.
Boba...
 
Até o próximo texto
Au Revoir

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Um Lugar


Está sempre lá, sabe? 

Sempre pronto para um abraço na minha chegada. 
Sempre sorrindo. Um lugar onde a segurança habita. 
É em mim que ele habita. Me reside para que eu resista. 
Me acolhe para que eu não fuja. 
Alguns o notam no meu sorriso, no meu olhar. 
Alguns só o sentem em meus ensaios. 
Mas ele está aqui. Para mim. Por mim. Me esperando.
E me abraça amorosamente para que eu entenda.
Me preenche para que eu não me esvazie por aí.
Meu universo interior. Cheios de cores e flores.
Minha vida borboleta. Minha lua de poesia.
Onde posso ser mais eu.
Onde minha loucura não incomoda.
Onde posso ser a criança e me esquecer da mulher.
Meu mundo particular onde sou Dorothy, Alice, Sophia, Beatriz.
Meu lugar do Oeste, Eastwick, Blair.
Está sempre lá, sabe?
Sempre pronto para minha chegada.
Sempre feliz por me ver. Segurança que me habita.
Lugar onde sou feliz!
(Waleska Zibetti, in "Um Lugar")

domingo, 19 de abril de 2015

Esquizofrenia: PERCEPÇÃO E REALIDADE.


por Gabriella Gilmore


Em uma de minhas pesquisas, descobri este médico e autor no qual me apaixonei. Gostaria de dividir este achado com vocês.



Hoje nosso post é uma sugestão de pesquisa sobre esquizofrenia e psiquiatria, tendo como mentor o Dr. Ronald Laing.



O psiquiatra escocês Ronald David Laing (1927 – 1989) foi um dos pensadores mais influentes e controversos da década de 1960.
Ele questionava a ortodoxia, defendendo que as percepções das pessoas consideradas mentalmente doentes são tão válidas em suas próprias condições quanto aquelas nos indivíduos “normais”. Laing ressaltava que quase qualquer comportamento poderia ser interpretado como um sintoma de esquizofrenia, possibilitando aos psiquiatras classificar clinicamente aqueles que simplesmente se recusavam a se adequar às expectativas da família e da sociedade. Na opinião de Laing, a esquizofrenia era uma forma de vivenciar o mundo, não uma doença; a “enfermidade” mental na verdade poderia ser uma jornada existencial – uma cura para a angústia originada na infância e na família.

Nascido em Glasgow em 1927, o próprio Laing teve uma criação familiar turbulenta. Após completar sua residência médica em 1958, trabalhou em uma unidade psiquiátrica do exército britânico. Seu livro, SANIDADE, LOUCURA E A FAMÍLIA (1964), em que defendia que a esquizofrenia poderia ser causada por um colapso na comunicação familiar, consolidou sua reputação internacional. Laing continuou seu notável trabalho clínico durante a década de 70. Posteriormente, seu prestigio intelectual ficou comprometido devido ao seu fascínio pelo misticismo, o que fez com que acabasse perdendo sua licença para exercer a medicina na Grã-Bretanha.

sábado, 18 de abril de 2015

O Sorriso de Monalisa

"Minha professora, Katherine Watson, vivia segundo suas convicções e não as comprometeria nem pela Wellesley. Dedico este meu último editorial a uma mulher extraordinária que nos serviu de exemplo e nos incentivou a ver o mundo com novos olhos. Quando lerem este, ela estará a caminho da Europa onde sei que derrubará novas barreiras e semeará novas ideias. Ela foi taxada de fracassada por partir transviada sem rumo, mas nem todas que se desviam carecem de rumo, especialmente quem procura a verdade além da tradição, além da definição, além da imagem. Eu nunca a esquecerei." (Betty Warren)
 
 
Katharine Watson (Julia Roberts) é uma recém graduada professora que consegue emprego no conceituado colégio Wellesley, para lecionar aulas de História da Arte, o ano era 1953. 
Incomodada com o conservadorismo da sociedade e do próprio colégio em que trabalha, Katharine decide lutar contra estas normas e acaba inspirando suas alunas a enfrentarem os desafios da vida.
Essa mesma professora que no começo do filme tinha uma aula completamente preparada, viu-se obrigada a mudar seu método, pois ela havia sido desafiada pelas alunas.
Então ela começa a utilizar a abordagem de ensino socio cultural, onde ela queria criar sujeitos pensantes, críticos, criativos, e com isso ela mostrou outra realidade para as alunas, porque na verdade a escola mostrava que as alunas teriam que ser excelentes esposas (como a sociedade queria que elas fossem), e apenas isso, e para ser excelentes esposas elas não poderiam pensar; já a Katherine mostrou que elas poderiam ser excelentes esposas, mas que poderiam também ter uma carreira, viver em sociedade e lutar pelo que elas queriam.
Se nós analisarmos friamente e trazer este tema pra contemporaneidade, é uma "batalha" das mulheres do Século XX e primeiros 15 anos do século XXI.
 
As mulheres no decorrer dos anos vem conquistando seu espaço na sociedade.
Quebrando barreiras e preconceitos, atngindo seu alvo com êxito.
A liberdade de expressão.
Nas décadas de 50 e 60 elas tinham que ser submissas aos homens que representava a figura de chefe da casa, e detinha todo o controle financeiro, e nunca poderia ser desafiado ou desacatado.
Naquela época a mulher padrão, perfeita para a sociedade era a "rainha do lar
",prendada, boa esposa que cuidava dos filhos e da aparência, tudo em prol do casamento.
Discutimos esse papel em textos anteriores quando lemos A mulher de 30 anos do Balzac um dos precurssores do feminismo ao mostrar Julia, a infeliz heroína, às voltas com problemas fundamentais da vida amorosa e sentimental das mulheres e com o fracasso do casamento, ante a uma sociedade extremamente machista.
 
"Vim à Wellesley porque queria mudar o mundo, mas mudar pelos outros... é mentir para si." (Katherine Watson)
 
Aqui está o trailler:

O interessante é que o filme tenta passar que não basta apenas reproduzirmos o conhecimento, mas sim, tornemos produtores de nós mesmos e sejamos capazes de desenvolver o senso crítico em qualquer momento sem abdicar dos nossos sonhos.

Até o próximo texto
Au Revoir